8.4.09

A moradia 17



Estão dois homens a pintar a moradia que fica em frente à casa do meu pai, o que significa que os Müller devem vir passar a Páscoa a Portugal. Os Müller são uma família Alemã que tem uma casa de férias no meu bairro, mas já cá não vêm há tantos anos, que até pensei que tivessem morrido. Eu tinha seis ou sete anos e adorava quando eles vinham cá passar o Verão. Todos os dias me levavam à praia porque precisavam de alguém para brincar com a filha, porque eu tinha a mesma idade dela e porque eu era o único menino que eles conheciam na minha rua. A Kristin e eu mal nos percebíamos, mas nada que nos impedisse de aventurar pela praia sozinhos enquanto o Sr Jürgen dormitava na esplanada do Cascais Bar.

Um dia enquanto brincávamos na água, uma onda mais forte arrastou a Kristin, e lá estava ela prestes a morrer afogada. Sem perder tempo mergulhei, agarrei-lhe a mão direita e, com um gesto rápido puxei-a para um lugar seguro.

Durante os anos que se seguiram senti que este fora o melhor momento da minha vida. Tinha na realidade salvo a vida de alguém, e tinha ficado fascinado com a rapidez e a segurança dos meus movimentos nesse instante crítico. Via o salvamento na minha cabeça vezes sem conta, e vezes sem conta revivia a sensação de puxar aquela menina de dentro do mar.

Desde esse ano os Müller só vieram mais dois Verões, e eu não voltei a vê-la durante mais de quinze anos.

Esta manhã quando passei e vi a moradia 17 ser pintada não imaginava a surpresa que me esperava. Quando de noite fui visitar o meu pai, por acaso ou não, a minha velha amiga apareceu para me cumprimentar. Está agora crescida, é uma jovem mulher de vinte e cinco anos, que acaba de se licenciar, e devo dizer que senti algum orgulho em me ter procurado. No meio da difícil conversa que tentámos estabelecer, aludi à tarde de verão em que a tinha puxado debaixo da agua. Tinha curiosidade em saber até que ponto ela se lembrava de ter estado à beira da morte, mas pela expressão da sua cara quando lhe fiz a pergunta, era óbvio que não se lembrava de nada. Um olhar vazio, um ligeiro franzir de sobrancelhas e por fim um encolher de ombros.
Compreendi então que ela não se tinha apercebido que tinha estado em perigo. Todo o incidente ocorreu num instante, dez segundos, dez segundos da sua vida, um intervalo de tempo sem importância para ela. Para mim, por outro lado, esses dez segundos tinham representado uma experiência inesquecível, um acontecimento único na historia da minha vida.